CAPITULO I
A Lei dos Homens
“Você nem imagina o Inferno, mas conseguimos senti-lo daqui. Nós sempre imaginamos o Céu, mas você consegue senti-lo?”
- Emeth Hagia.
Como a maioria dos templos, a Igreja da Santa Trindade era um ambiente maravilhoso. Os bancos dispostos numa proporção aconchegante. Duas imagens na entrada, uma de Cristo vestido com mantos azuis e vermelhos, a coroa de espinhos, e de braços abertos, a outra era de Nossa Senhora do Carmo, toda envolvida num manto branco, com o menino Jesus nos braços vestido também de branco. Três cadeiras de mármore destacavam-se na frente, a do meio em forma de trono, fazendo menção à posição de reinado exercida pelo Cristo encarnado, encenada pelo Padre. Atrás delas, na parede principal, três desenhos rascunhados em linhas negras que qualquer cristão católico no mundo reconheceria: no centro, Cristo ressuscitado com o Evangelho, a Palavra de Deus, numa das mãos, e a outra apontando para o céu; à direita, Nossa Senhora com seu Imaculado Coração nas mãos; e à esquerda, João Batista, o batizador, num gesto de consagração da Assembléia que se reunia à sua frente, perante o altar do Deus único e verdadeiro. Na porta à direita, ficava a sacristia, lugar onde se guardava todos os instrumentos necessários nas missas. O centro detinha um piso mais elevado em dois degraus, era o lugar onde estava o altar, usado para a consagração das oferendas. Tudo ali tinha um ar de espiritualidade elevada.
Mas algo estava diferente. Embora se encontrasse ali ajoelhado diante daquele altar, como fizera noutros momentos, ele sabia que desta vez era diferente. Ele não se considerava digno sequer de estar naquela posição. O tom de súplica parecia estarrecedor, terrível, vazio. Um Sacrifício Imperfeito diante do Criador. – pensou Emeth e um calafrio cortou sua espinha. – Essa é última vez, Senhor! - sussurrou baixinho.
Rapaz de pouco mais que 18 anos, Emeth tinha muitos sonhos para realizar. Terminar a faculdade de história, se casar, comprar uma casa, um carro... Tinha os olhos de um castanho translúcido, cabelos pretos encaracolados pelo corte moicano, cor morena, 1,75 metros de altura, e um sorriso enigmático.
Durante um bom tempo sua felicidade foi realizar aquele trabalho de acolitato. Na verdade, acólitos eram seminaristas de um grau abaixo dos diáconos (estavam numa escala de cinco dos sete anos requeridos para formação sacerdotal), assim, os verdadeiros acólitos estavam a dois anos da consagração, eram dois graus abaixo dos Padres, na escala do sacerdócio. A posição que ele exercera nestes meses não merecia o nome de acólito, ele e seus companheiros não passavam de coroinhas: a forma mais humilde de servir a Deus através da ajuda dedicada aos Padres nas missas, feita por garotos. Um desapontamento o tocou ao pensar que não passava de um coroinha mais velho que o normal. – Tudo bem! – disse a si mesmo.
Desde que fora salvo da depressão ele só queria retribuir a benção que Deus manifestara na sua vida, através deste serviço humilde, porém, de grande significado interior. Ao seu lado estava o corpo do sacerdote que tanto o influenciara, um homem de estatura média, devia ter 1,55 metros de altura, era quase todo calvo, de cor morena e cabelos pretos. Havia sangue por toda parte, esta cena o deixava aniquilado.
– Senhor, por quê? Que eu deva pagar pelos erros, concordo plenamente. Mas eu nunca quis que outros pagassem por minha culpa... – disse Emeth com o coração silenciado.
– Ora, Moicano, clame por ajuda ao teu Deus agora! – disse seu algoz, com uma voz que mais parecia demoníaca que humana. A arma de fogo reluzindo em sua mão apontava diretamente para peito do acólito.
– Cara, isso é entre mim e você, deixe Deus fora disso! – disse ele, mal podendo conter a fúria que ardia dentro de si. – Olha ao seu redor, miserável. Olha tudo o que já fez neste lugar! Será mesmo que me odeia tanto assim... A ponto de agredir a casa Deus... Você... – quis continuar, mas as lágrimas calaram seus lábios.
– Hahahahahahaha! – gargalhou o carrasco da forma mais cruel que pode. De olhos negros como a noite, sorriso selvagem e um corpo atlético, naquele momento ele inspiraria medo até na mais fria criatura. Seus 1,80 metros de altura bem distribuídos, sua cor negra e sua forma de se falar eram o bastante para se impor.
Emeth mal imaginava o teor do ódio que ainda percorria sua mente doentia de seu algoz. Estava irado, seus poros exalavam veneno e cólera... Nada no mundo o arrancaria dali. Era a vida que estava ali de joelhos que ele queria tirar, mesmo que o próprio Deus o ordenasse o contrário, seu coração não estava disposto a ceder. Graças a Deus, a Igreja estava vazia naquele momento. Como de costume num domingo, as pessoas se amontoavam dentro daquele templo, isto em parte, por mérito daquele sacerdote que se encontrava ali, inerte, alvo de uma bala bárbara, que tinha como endereço o seu coração.
Novas lágrimas correram pelo rosto do acólito. O clima no interior do templo era apocalíptico. – Este não é o fim do mundo, mas é o fim do meu! – afirmou sem perspectivas.
– Um tiro apenas! Seu Padre predileto não resistiu nem a um único tiro, senhor Hagia! – divertiu-se o algoz com seu sorriso refletido na sua pistola. – Ora, pensei que esses seus guias espirituais fossem pessoas superiores... – continuou zombando.
– Já te disse, deixa isso só entre mim e você, Santinho! – esbravejou Emeth, com uma voz falha, rouca, já sem força.
– Eu detesto esse nome, seu imbecil! – gritou Santinho. De fato, desde criança seu nome lhe causava dor de cabeça só de escutá-lo: Santinho Christopher dos Anjos. Seus amigos o chamavam Santo Cristo, e ele sempre imaginou ser exatamente isso que seus pais tentavam transmitir no seu registro de nascimento. – Há você sabe o quanto odeio meus pais por terem me dado tal nome! – gritou Santo.
– O problema é seu, se não aceita quem é! – devolveu Emeth na mesma moeda.
– Pra você é fácil, senhor Emeth Hagia Lev dos Anjos! Seu nome significa certeza de Deus! – zombou Santinho, obviamente sempre achara uma tolice sem medidas o nome que foi dado ao seu primo. Realmente seu nome era cheio de significado: Emeth, o MTh era hebraico antigo e significava VERDADE, e Hagia era grego, traduzindo ficava DIVINA, Lev também era o hebraico da palavra CORAÇÂO, e para completar havia o “dos Anjos”. A mãe de Emeth, ou Met como ela o apelidara desde cedo, considerava o nome uma obra de arte...
– Eu não pedi essa designação, Cara! Às vezes, não é o homem que encontra seu destino, mas sim o destino que encontra um homem... – disse Met, num suspiro de aceitação.
– Concordo, primo! Você acaba de encontrar o seu destino! Preparado pra morrer aqui, onde você se sente o melhor homem do mundo? – silvou Christopher, liberando a trava de segurança da pistola.
– Que se faça sua vontade! E que o inferno seja calmo até a sua chegada! Você se tornou um demônio, meu primo! – disse Met, já completamente desanimado.
– Hahahahaha! Eu já estive lá! Mas o que você entende disso, senhor Hagia? Nunca sentiu seu coração explodir de raiva! Mas eu vim aqui hoje, pra devolver todas as desgraças que você me fez passar! Está preparado para o seu julgamento? – vociferou Cristo, com um brilho no olhar. Um brilho mais negro que a noite. Estar na prisão fora bem mais que viver no inferno para ele. Desde que fugira, nada além do desejo de vingança passava pela sua mente enlouquecida.
Dois anos antes, as coisas naquela localidade tinham uma realidade bem diferente. Santo Cristo não tinha adquirido seu codinome por simples coincidência, ele outrora fora o líder de umas mais terríveis gangues que infestavam aquela região. Com muito sacrifício a criminalidade baixou para níveis normais de aceitação, por mérito da ação conjunta da equipe policial, a insistência dos moradores, e uma manobra corajosa do próprio Emeth. Embora Santo Cristo controlasse parte das drogas distribuídas e dos crimes praticados ali, o que o tornava detentor de um pequeno poder, Met agira num ato de pura fé: armara uma emboscada contra seu primo, e o então Cristo, fora preso de maneira humilhante.
– Traição! Pura traição, caro Anjo! Você entregou o seu próprio sangue aos lobos! E agora um lobo solitário ira te destroçar também! Hahaha! – riu-se Santinho.
– Eu sei o que fiz, não discordo do seu julgamento. Aquele que agride será agredido de volta. Um círculo não tem começo nem fim. Mais cedo ou mais tarde, todos os nossos erros são castigados. É a lei dos homens... – disse Met, imerso numa profunda tristeza. Claramente julgava ter agido de boa vontade. Como primos, ele colocara no seu íntimo que era seu dever ajudá-lo. Quem, em sua sã consciência, gostaria de viver numa comunidade refém de seus próprios parentes? Ainda mais Emeth, que havia se inspirado na sua versão da tal Teologia da Salvação: aguardava sim o julgamento de um Cristo, do verdadeiro Cristo Salvador... Mas tentava se meter em toda forma de ajuda para si e para seus amigos. Por outro lado, ele também se sentenciava merecedor de enfrentar o destino que estava se desenrolando ao seu redor.
– Ora, Cúpido! De repente ficou calado. Algo te incomoda? Ao que parece... Você foi abandonado pelos seus Anjos, não? – continuou Christopher. A lembrança do dia em que fora preso, graças ao seu primo e aos amigos dele, ainda queimava por dentro. O “Cúpido Escarlate” havia sido a antiga designação escolhida por Met quando formara seu grupo: “Os Anjos de Preto”. Escolheram tal nome por causa dos trajes que utilizavam: batinas pretas usadas por baixo de uma sobrepeliz branca, era o padrão dos acólitos e seminaristas. Emeth se apelidara de Cúpido Escarlate porque entrara no grupo como coroinha, e o padrão para esse grupo de jovens era a batina vermelha.
– Já chega, maldito! Que Deus tenha piedade dos seus atos! – bradou Met.
– Isso mesmo, já chega! Adeus, Maninho! Te vejo no inferno! – Santinho quis dar um ar dramático para finalizar sua investida.
Aos ouvidos de Hagia, nada havia sido tão rápido quanto aquela bala: um estalar do gatilho e ele sentiu seu peito sangrar.
– Quase um batismo de sangue! Senhor, em tuas mãos entrego o meu espírito. – disse Met. – Ainda quantas vezes, desde o Filho Original, esta frase ressoara através dos séculos? – pensou.
Ao dizer tais palavras ouviu mais uma vez um som veloz, porém, diferente de tudo o que conhecia: Uma flecha acertara o braço de seu primo! Mas de onde? – pensou. A resposta para sua pergunta estava na entrada da Igreja. O vulto de um ancião armado com um arco foi tudo o que conseguiu vislumbrar. Estava desmaiando, adormecendo enquanto sua vida se exauria. Apenas uma frase ecoou em seus ouvidos:
– O erro do homem é esquecer a Justiça de Deus!
Uma estranha luz parecia vir em sua direção... Uma luz que emanava daquele ancião.
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